terça-feira, 27 de março de 2012

Alguns dados sobre o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)

Caros alunos, segue reportagem sobre o "RDD", assunto que falamos na aula de hoje. Como surgiu a questão, podem verificar que temos hoje cerca de 407 apenados cumprindo pena sob tal "regime". 

Cerca de 25% dos presos "mais perigosos" do país são do RJ

( http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/03/cerca-de-25-dos-presos-mais-perigosos-do-pais-sao-do-rj.html, dia 17.03.2012)

Dados foram divulgados por Ministério da Justiça em janeiro.

Carolina Lauriano Do G1 RJ

Sistema Penitenciário Federal foi criado para isolar presos considerados mais perigosos (Foto: Isaac Amorim / Ministério da Justiça)

Sistema Penitenciário Federal foi criado para isolar presos considerados mais perigosos (Foto: Isaac Amorim / Ministério da Justiça)
O Brasil tem 407 presos considerados de alta periculosidade, que ficam encarcerados nas quatro penitenciárias federais do país, segundo os últimos números divulgados pelo Ministério da Justiça. O órgão é responsável pelas penitenciárias de Catanduvas (PR), Campo Grande (MS), Mossoró (RN) e Porto Velho (RO). Cem destes presos, quase 25%, são provenientes do Rio de Janeiro, segundo os dados do ministério.
O Sistema Penitenciário Federal foi criado para isolar presos considerados mais perigosos, a partir de uma execução penal diferenciada, já que esses internos podem comprometer a ordem e a segurança pública nos seus estados de origem. Por isso são transferidos para outras regiões, onde o contato com comparsas fica dificultado.
Entre os 100 presos que saíram do Rio estão os traficantes Fabiano Atanázio da Silva, o FB, Luís Claudio Serrat Correa, o Claudinho CL, Antônio Bonfim Lopes, o Nem, Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, Elias Pereira da Silva, o Elias Maluco, e Alexander Mendes da Silva, o Polegar.
Na sexta-feira (16), mais um preso do Rio se juntou à lista: o traficante Paulo Rogério de Souza Paz, o Mica, apontado como ex-chefe do tráfico do conjunto de favelas da Penha, na Zona Norte, foi transferido para a Penitenciária Federal de Porto Velho, em Rondônia, segundo informou a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap).
Segurança máxima
O primeiro presídio de segurança máxima foi o de Catanduvas, inaugurado em junho de 2006. A penitenciária de Campo Grande estreou seis meses depois. Em 2008, foi a vez de Porto Velho. O presídio mais novo é o de Mossoró, que começou a funcionar em julho de 2009.
O diretor do Sistema Penitenciário Federal, Arcelino Vieira Damasceno, afirmou ao G1 que o quinto presídio federal do país, que será construído em Brasília, está previsto no orçamento de 2012, porém ainda não há um a data prevista para o início das obras.
O sistema de segurança é bastante rígido. Para começar, os presos não dividem celas. São todas individuais. Sensores e alarmes fazem parte dos equipamentos de vigilância, que conta ainda com circuito fechado de televisão.
O fornecimento de água e luz é controlado por agentes penitenciários federais, em salas de controle. Não há tomadas ou interruptores de energia no interior das celas. Os pisos e paredes possuem reforço nas camadas de cimento.
As penitenciárias possuem 208 vagas e ocupam cerca de 12 mil metros quadrados (Foto: Isaac Amorim / Ministério da Justiça) 
As penitenciárias possuem 208 vagas e ocupam cerca de 12 mil metros quadrados (Foto: Isaac Amorim / Ministério da Justiça)
Alimentação e assistência
Os presos de alta periculosidade recebem quatro refeições por dia. O café da manhã é composto por leite integral, pão francês, café com açúcar, margarina e fruta da época. O almoço, segundo informou o Ministério, é composto, basicamente, de arroz (ou macarrão), feijão carioquinha ou preto (alternadamente), farinha, carne branca ou vermelha, legumes, salada, sobremesa, suco ou refresco. O cardápio do jantar é bem parecido a este último e o da ceia, similar ao desjejum.
Seguindo a Lei de Execução Penal (LEP), que aborda os direitos do preso e a reintegração dele na sociedade, as penitenciárias federais desenvolvem ações “no sentido de minimizar os diversos danos do encarceramento, o que inclui a saúde física e mental”, informou o Ministério. Para diminuir a quantidade de horas na cela, eles têm à disposição assistência educacional e profissionalizante, com oficinas literárias, o que garante a remição da pena.
Internos em RDD não saem da cela nem para o banho de sol. (Foto: Isaac Amorim / Ministério da Justiça)
Internos em RDD não saem da cela nem para o banho de sol. (Foto: Isaac Amorim / Min. da Justiça)
As celas e os presos
Todos os presídios federais possuem capacidade para 208 presos. Atualmente, a penitenciária de Porto Velho é a que abriga o maior número de internos – são 123, já contando com o traficante Mica. O presídio de Mossoró possui a menor quantidade de presos de alta periculosidade: são 53.
As quatro unidades apresentam o mesmo padrão. Há dois tipos de cela: aquelas construídas para quem está no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), com 12 m², e as demais celas, que possuem 7 m². A diferença no tamanho é devido ao espaço para o banho de sol que há nas celas do RDD, já que esse tipo de interno não sai nem mesmo para esse serviço.
O banho dos presos de um presídio de segurança máxima é curto. Eles têm até 10 minutos debaixo do chuveiro.
Visitas
Uma vez por semana eles podem receber visitas, durante no máximo três horas, de cônjuge, companheira com a união estável comprovada, parentes ou amigos. A visita íntima é quinzenal, com duração de até 1h.
Em 2010, o governo federal deu início à visita virtual e à videoconferência judicial, um projeto do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e da Defensoria Pública da União. Os visitantes vão às unidades das Defensorias Públicas da União localizadas nas capitais das unidades da federação e conseguem se comunicar com os internos virtualmente.
Vistorias dos Ministérios Públicos
Passados mais de cinco anos desde a inauguração do presídio de Catanduvas, o MPF do Paraná, que fez vistoria no local no fim de 2011, constatou que algumas reclamações são recorrentes no local. Segundo o procurador da República João Vicente Beraldo Romão, os detentos pedem mais oficinas de trabalho, mais tempo para visitas sociais e ainda melhora no sistema de atendimento médico. O MP afirma que não há um médico do quadro do Departamento Penitenciário (Depen). O atendimento clínico, segundo explicou o MP, é feito por profissional contratado através de um convênio, durante duas horas por dia (das 10h às 12h), de segunda a sexta-feira. Se o preso necessitar de atendimento fora desse horário, ele é encaminhado para o Hospital Universitário do Oeste do Paraná (Huop).
O diretor do Sistema Penitenciário Federal, Arcelino Vieira Damasceno, informou que em relação às oficinas de trabalho, novas propostas de oferta laboral estão sendo estudadas. Quanto aos atendimentos clínicos, ele disse que eles estão sendo realizados com o auxílio de médicos colaboradores, em decorrência de ausência de tal profissional no quadro de servidores do Depen. “Houve concurso público, porém, não foram preenchidas as vagas de médicos clínicos e psiquiatras necessários”, disse ele.
De acordo com o Ministério Público Federal do Rio Grande do Norte, que realizou visita ao presídio de Mossoró no dia 31 de janeiro deste ano, os presos atualmente reclamam da deficiência alimentar. Segundo o MPF, um procedimento administrativo apura a denúncia. Arcelino Damasceno, entretanto, afirma que não foi informado sobre as reclamações. Ele ressaltou que o cardápio fornecido aos presos “foi definido por um grupo de nutricionistas devidamente qualificados”.
Veja onde ficam os presídios federais e como são as celas por dentro (Foto: Arte G1)

 

sexta-feira, 23 de março de 2012

DIREITO PENAL "DESCOMPLICADO"?

Caros, segue excelente artigo do Prof. Lênio Streck acerca desse desejo que temos, no Direito, de tornar coisas extremamente complexas em falsamente simples...REFLITAM! Ótimo final de semana!

Por Lênio Streck (publicado em Consultor Jurídico, 22 de março de 2012)


Inicio esta coluna semanal (como se diria em linguagem jornalística, “hebdomadária”) falando de um assunto que está na pauta cotidiana da doutrina e da jurisprudência. Com efeito, venho denunciando de há muito um fenômeno que tomou conta da operacionalidade do direito. Trata-se do pan-principiologismo, verdadeira usina de produção de princípios despidos de normatividade. Há milhares de dissertações de mestrado e teses de doutorado sustentando que “princípios são normas”. Pois bem. Se isso é verdadeiro – e, especialmente a partir de Habermas e Dworkin, pode-se dizer que sim, isso é correto – qual é o sentido normativo, por exemplo, do “princípio” (sic) da confiança no juiz da causa? Ou do princípio “da cooperação processual”? Ou “da afetividade”? E o que dizer dos “princípios” da “proibição do atalhamento constitucional”, da “pacificação e reconciliação nacional”, da “rotatividade”, do “deduzido e do dedutível”, da “proibição do desvio de poder constituinte”, da “parcelaridade”, da “verticalização das coligações partidárias”, da “possibilidade de anulamento” e o “subprincípio da promoção pessoal”? Já não basta a bolha especulativa dos princípios, espécie de subprime do direito, agora começa a fábrica de derivados e derivativos. Tem também o famoso “princípio da felicidade” (desse falarei mais adiante!). No livro Verdade e Consenso (Saraiva, 2011), faço uma listagem de mais de quarenta desses standarts jurídicos, construídos de forma voluntarista por juristas descomprometidos, em sua maioria, com a deontologia do direito (lembremos: princípios são deontológicos e não teleológicos!).
Outro fator que colabora para o desenvolvimento desse tipo de fragilização do direito é o ensino jurídico, ainda dominado – ou fundamentalmente tomado – por uma cultura estandardizada. Leituras superficiais, livros que buscam simplificar questões absolutamente complexas. A pergunta que faço é: alguém se operaria com um médico que escrevesse um livro chamado “cirurgia cardíaca simplificada”? Ou o “ABC da operação de cérebro”? Se a resposta for “não”, então (re)pergunto: então, por qual razão, no campo jurídico, o uso desse tipo de material é cada vez mais recorrente?
Avancemos, pois. Se o constitucionalismo contemporâneo – que chega ao Brasil apenas ao longo da década de 90 do século XX – estabelece um novo paradigma, ou proporciona as bases para a introdução de um novo –, o que impressiona, fundamentalmente, é a permanência das velhas formas de interpretar e aplicar o direito, o que pode ser facilmente percebido pelos Códigos ainda vigentes (embora de validade constitucional duvidosa em grande parte). Em tempos de intersubjetividade (refiro-me à transição da prevalência do esquema sujeito-objeto para a relação sujeito-sujeito), parcela considerável de juristas ainda trabalha com os modelos (liberais-individualistas) “Caio”, “Tício” e “Mévio”...!
Os manuais – entendidos aqui, deixo claro, como “modelos prêt-à-porters” de disseminação da dogmática jurídica de baixa densidade científica – mudaram muito pouco nos últimos anos. Portanto, falo de uma certa “cultura manualesca”. Sem generalizar, evidentemente, até porque existem bons manuais. Pois bem. Mergulhados nesse magma de significações (aqui homenageio Cornelius Castoriadis) forjado pelo sentido comum teórico, boa parte dos juristas reproduz sentidos. É a estandartização que, paradoxalmente, cresce dia a dia, em plena era da informatização. Daí ser possível afirmar que parte do material utilizado nas salas de aula das Faculdades de Direito deveria trazer uma tarja com a advertência similar às carteiras de cigarro: “o uso constante desse material pode fazer mal à sua saúde mental”. Além de uma fotografia de um bacharel, com uma expressão bizarra, com o subtítulo: “Usei durante cinco anos e fiquei assim...”.
No âmbito do sentido comum teórico (dogmática jurídica de baixa intensidade teorética), ocorre a ficcionalização do mundo jurídico-social. Confunde-se a ficção da realidade com “a realidade das ficções”... Parcela do que consta nos manuais e compêndios é reproduzida nos concursos públicos.
Não faz muito tempo, em um importante concurso público, foi colocada a seguinte questão: Caio quer matar Tício (sempre eles), com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício (igualmente com veneno, é claro!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (na pergunta não há qualquer esclarecimento acerca de como o idiota do Tício bebe as duas meias porções de veneno). Em conseqüência da ingestão das meias doses, Tício vem a perecer... Daí a relevantíssima indagação da questão do concurso: Qual o crime de Caio e Mévio? Muito relevante; deveras importante...! Qual seria a resposta? Por certo, os nossos tribunais estão repletos de casos como este... Casos como este devem ser corriqueiros!
Outro exemplo que há tempos venho denunciando é o de uma pergunta feita em concurso público de âmbito nacional, pela qual o examinador queria saber a solução a ser dada no caso de um gêmeo xifópago ferir o outro! Com certeza, gêmeos xifópagos - encontráveis em qualquer esquina - andam armados e são perigosos... Pois não é que a pergunta voltou a ser feita, desta vez em concurso público de importante carreira no Estado do Rio Grande do Sul? A questão de direito penal que levou o número 46 dizia:
“André e Carlos, gêmeos xipófagos [sic – o original da pergunta constou assim], nasceram em 20 de janeiro de 1979. Amadeu é inimigo capital de André. Pretendendo por(sic) fim a vida de André, desfere-lhe um tiro mortal, que também acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz, sobrevive”.
E seguem-se várias alternativas.
Sem entrar no mérito da questão — e até para não parecer politicamente incorreto e não ser processado pelo gêmeo xifópago que, milagrosamente, sobreviveu —, impõem-se, no mínimo, duas observações: primeira, é importante saber que os gêmeos xifópagos (e não xipófagos, como constou da pergunta) nasceram no mesmo dia (tal esclarecimento era de vital importância!); e, segunda, não está esclarecido o porquê de Amadeu odiar apenas a André, e não a Carlos (afinal, tudo está a indicar que eles sempre andavam juntos – a ironia, aqui, é irresistível).
Agora, falando sério: diariamente temos lutado para superar a crise do ensino jurídico e da operacionalidade do direito. Não está nada fácil. Basta um olhar perfunctório para verificar o estado da arte da crise. Para se ter uma idéia da dimensão do problema, há um importante manual de direito penal – dos mais vendidos - que ensina o conceito de erro de tipo do seguinte modo: um artista se fantasia de cervo e vai para o meio do mato; um caçador, vendo apenas a galhada, atira e acerta o “disfarçado em cervo”. Fantástico. Quem não sabia o que era erro de tipo agora sabe...(ou não!). Só uma coisa me deixou intrigado: por que razão alguém se fantasiaria de cervo (veado) e iria para o meio do mato? Trata-se de um mistério.
O mesmo livro explica o significado de nexo causal, a partir do seguinte exemplo sobre causas preexistentes: “o genro atira em sua sogra, mas ela não morre em conseqüência dos tiros, e sim de um envenenamento anterior provocado pela nora, por ocasião do café matinal”. Que coisa, não? Entretanto, a tragédia familiar não termina aí. O que seria causa “superveniente” no direito penal? O manual dá a solução, com o seguinte exemplo: “após o genro ter envenenado sua sogra, antes de o veneno produzir efeitos, um maníaco invade a casa e mata a indesejável (sic) senhora a facadas”. Significa dizer que o genro foi salvo pelo maníaco (seria o maníaco do parque, que teria escapado da prisão?) Outro mistério para a ciência jurídica resolver...
E o que seria erro de pessoa no direito penal? Resposta “perfeita”: é quando o agente deseja matar o pequenino filho de sua amante, para poder desfrutá-la (sic) com exclusividade (sic). No dia dos fatos, à saída da escolinha, do alto de um edifício, operverso autor efetua um disparo certeiro na cabeça da vítima, supondo tê-la matado. Noentanto, ao aproximar-se do local, constata que, na verdade, assassinou um anãozinho que trabalhava no estabelecimento como bedel, confundindo-o, portanto, com a criança quedesejava eliminar. Permitamo-nos imaginar a cena: alguém quer matar o filho da amante para “desfrutar” da mãe do infante! Ele queria exclusividade! Que sujeito tarado e perverso, não?
Ah, se o direito penal fosse tão fantasioso, engraçado ou simples assim. O problema é que sempre sobra (uma porção enorme de) realidade. E como sobra! Com efeito, enquanto setores importantes da dogmática jurídica tradicional se ocupam com exemplos fantasiosos e idealistas/idealizados, a vida continua. Mais ou menos como em uma sala de aula de uma faculdade de direito no Rio de Janeiro, em que o professor explicava os crimes de dano, rixa e estampilha falsa e, lá de fora, ouviram-se tiros, muitos tiros. Na verdade, enquanto o professor explicava os conceitos desses relevantes crimes, várias pessoas foram mortas, em um conflito entre traficantes. Mas o professor não se abalou: abriu seu Código e passou a explicar o conceito de atentado ao pudor mediante fraude!
Faltam-nos, pois, elaborar grandes narrativas no direito. A literatura deveria nos auxiliar, para, a partir disso, abrir frestas no direito para o ingresso da sangria do cotidiano. Uma pitada de Os Miseráveis, de Victor Hugo – que, publicado em 1862, vendeu sete mil exemplares em vinte e quatro horas - poderia ser útil. Quantos Jean Valjeans, personagem que é encarcerado e depois perseguido por ter furtado um pão, existem espalhados no “sistema” carcerário ou no “sistema judiciário”, respondendo processos? A cada dia, deparamo-nos com novos Jean Valjeans... Como disse o camponês salvadorenho – a frase é creditada a um conto de José Jesus de La Torre Rangel – “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”!
Mas prossigo: pesquisando um pouco mais, descobri em outro manual que o indivíduo que escreve a carta não pode ser agente ativo do crime de violação de correspondência; também constatei que, para configurar o crime de rixa, é necessário o animus rixandi (sic), e ainda verifiquei que agressão atual é a que está acontecendo, e que agressão iminente é a que está por acontecer (muito instigante, não?). E coisa alheia móvel, no crime de furto, é algo “que não pertence à pessoa”...! Finamente, outro “mistério” foi solucionado pelo manual. Com efeito, havia sérias “dúvidas” acerca do que seria o “princípio da consunção”. Mas a resposta já está nas bancas, nas melhores casas do ramo, através do seguinte exemplo: é quando “o peixão (fato mais abrangente) engole os peixinhos (fatos que integram aquele como sua parte)”. E, pronto. Fiat Lux.
Mas tem mais. Talvez o Top Five da dogmática jurídica (entendida como sentido comum teórico) esteja no seguinte exemplo, retirado do Concurso Público para Ingresso na Carreira de Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, do ano de 2010.
PROVA ESCRITA DISCURSIVA DE CARÁTER GERAL DO XXIII CONCURSO PARA INGRESSO NA CARREIRA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (7 linhas para resposta)
12ª Questão: Um indivíduo hipossuficiente, interessado em participar da prática de modificação extrema do corpo (body modification extreme), decidiu se submeter a cirurgias modificadoras, a fim de deixar seu rosto com a aparência de um lagarto. Para tanto, pretende enxertar pequenas e médias bolas de silicone acima das sobrancelhas e nas bochechas, e, após essas operações, tatuar integralmente sua face de forma a parecer a pele do anfíbio.
Frustrado, após passar por alguns hospitais públicos, onde houve recusa na realização das mencionadas operações, o indivíduo decidiu procurar a Defensoria Pública para assisti-lo em sua pretensão.
Pergunta-se: você, como Defensor Público, entende ser viável a pretensão? Fundamente a resposta. (7,0 pontos)
Pois bem. Ao que consta, recebeu nota máxima quem respondeu que o defensor público deveria ajuizar a ação, porque o hipossuficiente tem o direito à felicidade (princípio da felicidade). Ponto para o pan-principiologismo...! Estamos, pois, diante de uma excelente amostra do patamar que atingiu o pan-principiologismo e o estado de natureza hermenêutico em terrae brasilis, que sustentam ativismos e decisionismos. Por certo, deve haver uma espécie de “direito fundamental a alguém se parecer com um lagarto” ou algo do gênero. Como se o direito estivesse à disposição para qualquer coisa. Não parece ser um bom modo de exercitar a cidadania o incentivo – por intermédio de pergunta feita em concurso público - a que advogados de hipossuficientes, pagos pelo contribuinte, venham a se utilizar do Poder Judiciário para fazer “laboratório” ou até mesmo estroinar com os direitos fundamentais. Não faz muito, um aluno recebeu sentença favorável de um juiz federal no RS, pela qual a Universidade deveria elaborar curriculum especial para ele, porque, por “objeção de consciência”, negava-se a manipular animais na disciplina de anatomia, na Faculdade de Medicina. E o que dizer de uma petição feita por defensor público requerendo o fornecimento, por parte do erário (a viúva) de xampu para pessoa calva? Eis, aqui, pois, uma coletânea de elementos que apontam, em pleno Estado Democrático de Direito, paradoxalmente para o recrudecimento do conhecimento jurídico.
Essa crise de paradigma(s) – que denomino de “crise paradigmática de dupla face (conforme delineio em Hermenêutica Juridica em Crise, Livraria do Advogado, 10ª. Ed, 2010) -, à evidência, atinge o conjunto das Instituições encarregadas de administrar a justiça. Com efeito, estas Instituições, reproduzidas a partir de um ensino estandartizado (e, aqui, devemos chamar à balia as Faculdades de Direito e a reprodução do sentido comum teórico por elas proporcionado), sustentam esse gap existente entre, de um lado, a teoria do direito e a dogmática jurídica tradicional, e, de outro, entre a Constituição, os textos infraconstitucionais e as demandas sociais. Assim, se a Constituição da República possui os indicadores formais para uma ruptura paradigmática , estes mais de vinte anos deveriam testemunhar uma ampla adaptação do direito aos ditames da Lei Maior. Mas não parece que isso esteja acontecendo.
Enquanto isso, no mundo das ficções, ficamos discutindo Caios, Tícios e o direito fundamental a alguém se parecer com um lagarto... O que mais falta acontecer? Na próxima semana falarei de outra praga contemporânea, típica de terrae brasilis: os embargos declaratórios...!
 Numa palavra final: mais instigante certamente seria não estarmos discutindo as hilariantes questões de concursos públicos de terrae brasilis, mas, sim, um romance como O Sorriso do Lagarto, de João Ubaldo Ribeiro... Naquela Ilha, o Dr. Lúcio Nemesio fazia experiências, buscando criar um ser híbrido, desprovido de algumas qualidades humanas. No livro, o louco médico tem êxito. Na minissérie que a Globo produziu, a cena final é maravilhosa, quando se vê a câmara focalizando um híbrido de um lagarto e humano escondido na igreja, enquanto um coral entoa um cântico! Pronto. Bem melhor que o direito! Ou seja, como explica o próprio João Ubaldo, o cerne da questão de O Sorriso do Lagarto é a crítica ao tempo que perdemos com as coisas no nosso cotidiano... Tem toda a razão!

terça-feira, 20 de março de 2012

JUSTIÇA RESTAURATIVA

Caros, conforme referido em aula, segue link com uma série de artigos e relatórios sobre o projeto piloto de "Justiça Restaurativa" no Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre:
http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.wwv_main.main?p_language=ptb&p_cornerid=7735&p_currcornerid=1&p_full=1

domingo, 18 de março de 2012

DICIONÁRIO E DIREITO PENAL?

Caros alunos, segue excelente reflexão do Prof. Luciano Feldens acerca das complexas relações entre Liberdade de Expressão e Direito Penal.

Censura ao dicionário e a liberdade de expressão (por Luciano Feldens)

A informação é oficial, oriunda da página da Procuradoria da República de Minas Gerais na internet: o Ministério Público Federal em Uberlândia ajuizou ação civil pública para a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição das edições do Dicionário Houaiss, o qual conteria expressões pejorativas e preconceituosas relativas aos ciganos. O Ministério Público Federal acusa o dicionário da prática de crime de racismo (artigo 20 da Lei 7.716/89).
O episódio revela aquele que parece ser o maior paradoxo do livre exercício do poder: ele pode degradar a si mesmo, levando consigo parcela da democracia e dos direitos que lhe são inerentes. O despropósito da acusação se evidencia com um argumento singelo, considerada a seriedade da obra questionada: a manifesta ausência de qualquer intenção racista. O risco do precedente, entretanto, nos convoca a uma reflexão.
Ninguém está obrigado a colocar-se de acordo com o conteúdo de uma obra da envergadura de um dicionário. Menos ainda a concordar com a totalidade dos sentidos atribuídos às milhares de expressões que procura definir. Entretanto, é preciso que estejamos vigilantes em face de todo o tipo de boas ideias que se queiram fazer impor de cima para baixo, como uma razão de Estado.
Conceitos não são unívocos, nem irrebatíveis, conforme indicam exemplos retirados da mesma e questionada fonte. A uma prostituta não seria propriamente agradável ver sua atividade definida como um desonra ou rebaixamento moral (Dicionário Houaiss, 2001, p. 2316); a um ateu não se aplicaria irrestritamente a pecha de desrespeitoso com as crenças religiosas (p. 334), bem como a um cristão não se deveria genericamente qualificar como pessoa “de aceitação insuportável” (p. 874). Um hipócrita não é permanentemente “fingido, falso, dissimulado” (p. 1538). Soa igualmente estranho que um escravo possa ser definido como um “amante extremamente dedicado” (p. 532), assim como nem todo crítico é “maledicente” ou “perigoso” (p. 875). Aliás, nem todo burocrata “exorbita de suas funções e assume atitudes intoleráveis no desempenho dessas” (532).
Ou seja, os sentidos emprestados às expressões não têm compromisso com uma verdade absoluta (por definição, inalcançável) ou com bons modos. Antes, são retratos da cultura, boa ou má, que perfaz a (nossa) História. Uma História cuja pretensão de aperfeiçoamento não se conquista com a negação do mal ou do injusto, mas com seu reconhecimento. O holocausto, por exemplo, é permanentemente relembrado. E é bom que assim seja, para evitar que a barbárie se repita. Talvez por essa razão, e a despeito de terrivelmente constrangedora, a expressão “judiaria” encontra como uma de suas múltiplas acepções a conduta de “maltratar alguém, física ou moralmente” (Dicionário Houaiss, 2001, p. 1.688) – em realidade, constrangedora é a História, e não o dicionário.
Em resumo, no mercado de ideias, a arte, a literatura e a opinião devem impor-se por si mesmas, por mais aborrecedoras que se revelem. Esse é o preço que pagamos por viver em um regime de liberdade. Um preço barato, se contrastado com o risco de seu oposto: o risco de um Estado que decida sobre o que devemos ler, concordar ou dissentir. Nessa linha, caberia recordar, com Cass Sunstein (Why Societies Needs Dissent, London: Harvard University Press, 2003), que o histórico e honorável rol de dissidentes inclui, entre outros tantos, Galileo, Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela. Se qualquer desses dissidentes estava, ou não, com a razão, essa não é uma razão de Estado.
Como anotou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais em manifestação lançada, na condição de Amicus Curiae, na ADPF 187 (ação que discutia a legitimidade da denominada “Marcha da Maconha”, exemplarmente ajuizada pela Procuradoria Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal), não existiria qualquer razão para que os direitos de liberdade de expressão, de crítica, de criação artística e de manifestação fossem alçados a tal condição caso seu âmbito normativo garantisse, exclusivamente, a exteriorização de concepções compartilhadas pela ampla maioria da sociedade. Se para isso servissem, comporiam uma inimaginável categoria de direitos desnecessários; não seriam, pois, verdadeiros direitos.
Por fim, não deixa de ser curioso que o alvo da acusação de racismo seja Houaiss. Justamente Houaiss, que foi relator, na década de 1960, da IV Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas cuja atribuição era conduzir o processo de descolonização de países africanos e asiáticos. É dele, Houaiss, a referência ao velho Wittgenstein, lançada no pórtico do dicionário sob ameaça de censura: “os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”. Que siga sendo assim.

Luciano Feldens É advogado, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS. Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2012

ALÉM DA PENA

Caros alunos,
Não percam o evento "ALÉM DA PENA", que ocorrerá esta semana na Faculdade. Não apenas observem as fotos dos presídios, como também assistam à palestra do Juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Penais de Porto Alegre. Até a próxima aula!

quarta-feira, 14 de março de 2012

O CRIMINOSO COMO "DOENTE" E A IDEOLOGIA DO TRATAMENTO

Caros, questionamos em aula as premissas teóricas da "prevenção especial positiva" no seu sentido mais rudimentar (isto é, o crime como algo anormal, o criminoso como doente e a pena como tratamento). Segue, então, crônica interessantíssima que se relaciona com o tema, escrita por um dos mais respeitados psicanalistas no Brasil. É um convite à reflexão...

CONTARDO CALLIGARIS
Os diferentes são todos doentes? (Folha de S.P, dia 08.02.2012)

Perdoamos facilmente, mas não é por misericórdia, é porque desculpamos os "doentes".
É um progresso?

Aconteceu no mesmo dia. Primeiro, houve uma mãe falando da homossexualidade do filho, que ela, em tese, acabava de descobrir: "É uma doença, não é?", perguntou. Ela queria encontrar, na minha confirmação, uma razão de perdoar o filho por ele ser como é. Mais tarde, alguém, falando de um parente próximo que é toxicômano, afirmou mais do que perguntou: "Ele é doente" - no tom de quem procura uma confirmação que permita perdoar o inelutável.

Nos dois casos, respondi com cautela, mais ou menos desta forma: "Certo, deve haver razões para ele ser assim, mas ele não é doente como alguém que pega um vírus ou uma bactéria, nem como alguém que seja invadido por um câncer". A observação convidava meus interlocutores a questionar o que eles entendiam por "doente". A mãe do primeiro exemplo acrescentou que, de fato, não devia se tratar tanto de uma doença quanto de uma disposição genética.

Meu segundo interlocutor poderia ter dito a mesma coisa. Afinal, logo na sexta passada, a revista "Science" publicou uma pesquisa de Karen Ersche, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), defendendo a tese de que existe uma predisposição genética à toxicomania (veja-se o caderno "Saúde" da Folha de 3 de fevereiro e o texto original por www.migre.me/7OLiy - de fato, sem entrar em detalhes, a pesquisa de Ersche mostra que deve haver uma predisposição genética à toxicomania, embora essa predisposição não sele o destino de ninguém).

Desde quinta-feira passada, também recebi vários comentários à minha última coluna: muitos diziam que, claro, "cross-dressers", travestis e transexuais devem ser tratados com respeito por uma razão simples: "eles são doentes". Parece que a possibilidade de respeitar a diferença passa pelo reconhecimento de que essa diferença constitui uma patologia ou uma espécie de malformação congênita (no fundo, a exceção genética é isso). Alguns perguntarão: "não é melhor assim?". Sem essa "injeção" de patologia (ou de teratologia), os diferentes seriam apenas julgados em nome de um moralismo qualquer: os drogados seriam vagabundos, os homossexuais, sem-vergonhas, e, quanto aos "crossdressers" e etc., nem se fala.

Em outras palavras, a substituição da moral tradicional ou religiosa pela medicina, em geral, produz uma nova tolerância das diferenças: elas não são punidas, são diagnosticadas. Mais um exemplo. Obviamente, para nossa proteção, não deixamos de prender os criminosos, mas já "sabemos" que muitos deles não são "ruins", eles só têm um problema de córtex pré-frontal -por causa dessa malformação, continuam impulsivos que nem adolescentes. O neurocientista David Eagleman ("Incógnito", ed. Rocco) chegou a propor que a gente treine nossos criminosos de modo que eles gozem de uma "normalidade" cerebral parecida com a da gente. Aí, sim, poderíamos condená-los com toda justiça. Sem isso, puniríamos "doentes", não é?

Perdoamos facilmente, mas não é por misericórdia ou compreensão, é porque respeitamos e desculpamos doentes e vítimas de anomalias genéticas. É um progresso? Acima de seu sistema jurídico, cada sociedade produz e alimenta um sistema de crenças, regras e expectativas que facilita a coexistência mais ou menos harmoniosa de seus cidadãos. Para essa função, a modernidade escolheu a medicina (do corpo e das almas). Com isso, o controle sobre nossas vidas seria aparentemente mais suave, mais "liberal".

Mas é só uma aparência. Pense bem. Certo, se toda exceção ou anormalidade for doença ou malformação, os diferentes não serão propriamente punidos. No entanto, a sociedade esperará que eles sejam "curados". Outro "problema": se os desvios da norma forem tolerados por serem efeitos de doença ou malformação, o que aconteceria com quem pratica desvios, mas não apresenta as "malformações" que o desculpariam?

O que acontece se eu quero me drogar, ser "cross-dresser" ou, mais geralmente, infrator só porque estou a fim de uma "farra" e sem poder alegar nenhuma das predisposições genéticas para essas "condições"? Aí vai ser o quê? Voltamos às punições corporais? Em suma, gostaria que fosse possível ser anormal sem ser "doente". E, se fosse o caso, me sentiria mais livre sendo punido do que sendo "curado".

sexta-feira, 9 de março de 2012

EQUÍVOCOS DA POLÍTICA MUNDIAL DE DROGAS

Caros alunos, segue interessante reportagem sobre a "guerra às drogas" e as possíveis alternativas de redução de danos. Nos vemos na próxima aula!
 

Sem resultados, guerra às drogas deve continuar em xeque em 2012

Cresce movimento de especialistas por enfoque alternativo à repressão ao tráfico e ao consumo
O relatório global das Nações Unidas sobre entorpecentes não deixa dúvidas: o uso de drogas ilícitas continua muito elevado no mundo, apesar dos esforços para combater a demanda e, principalmente, o tráfico. A cada ano, 210 milhões de pessoas experimentam ou fazem uso regular de substâncias ilegais. Destas, 200 mil morrem em decorrência do uso, sem contar as vítimas da repressão às drogas. Só no México foram 60 mil desde 2006. 
 
Leia mais:
Ao que tudo indica, a guerra às drogas está caminhando para um melancólico final. Desde 1971, quando os Estados Unidos de Richard Nixon impulsionaram o enfrentamento aos entorpecentes ilícitos, nunca foi tão evidente que o combate direto a esse consumo fracassou. Ao menos é isso que defende parte dos especialistas e políticos que discutem a questão.
Efe
Policiais da República Dominicana prestes a incinerar mais de oito toneladas de drogas apreendidas
“Em 2011, ficou claro para todo mundo que não é mal intencionado nem moralista que o nosso sistema falhou e não tem futuro. A ideia de continuar endurecendo o combate às drogas só vai aumentar o nível de violência na sociedade”, constata o jornalista Denis Russo Burgierman, autor do livro recém-lançado “O fim da guerra” (Ed. Leya).
Para ele, um marco importante é o surgimento da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, que hoje é presida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e tem “basicamente todos os generais da guerra contra as drogas dos anos 1990, a época mais dura desse enfrentamento”, diz Russo. Integram o grupo César Gaviria, ex-presidente da Colômbia; Ernesto Zedillo, ex-presidente do México; o Secretário de Estado americano, George Shultz, e o presidente do Federal Reserve durante o governo Reagan, Paul Volcker, e o ex-secretário geral da ONU Kofi Annan. Recentemente eles propuseram a Barack Obama repensar a legislação antidrogas. A reposta foi simplesmente “não”.
Mas o sistema está em crise. Para o advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) Pedro Abramovay, a população americana já dá sinais de que a descriminalização da maconha está bem perto de ser aprovada. Por enquanto, 14 estados aprovaram o uso medicinal da droga. “Por incrível que pareça, os EUA, que lideraram todo o processo de proibicionismo no mundo, têm agora a maior chance de romper com isso”. Abramovay, que seria o titular da Senad (Secretário de Políticas sobre Drogas) no governo Dilma Rousseff, foi demitido no início de 2011 após se pronunciar favoravelmente ao fim da prisão para pequenos traficantes.
Alternativas e experiências
A descriminalização, entretanto, não é sinônimo de solução do problema. Na Holanda, exemplo mundial de liberalização da compra de drogas, a questão da “porta dos fundos” é uma das falhas do sistema. “O que eles fizeram foi uma espécie de arranjo entre o Poder Executivo e o Judiciário. Para eles, o problema era o consumo de heroína e cocaína. Então, as drogas tidas como leves, como os cogumelos e a maconha, poderiam ser comercializadas sob determinadas regras. Só que nada estava previsto para quem vende para essas lojas. Na Holanda é proibido plantar ou importar as drogas. E daí entra a ‘porta dos fundos’, que virou uma contradição. A droga vem do tráfico”, ressalta o antropólogo Maurício Fiore, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Ainda assim, esse não é o principal problema do país no que diz respeito aos famosos “coffee shops”: atualmente os turistas são o maior incômodo dos holandeses. Alemães, franceses, ingleses, americanos e, claro, brasileiros, figuram entre os que lotam Amsterdã em busca de diversão e drogas.
O “turismo da canabis” irritava parte da população holandesa e, também, provocava resistência de países vizinhos, onde a droga não é liberada, que viam em Amsterdã uma porta a entrada de entorpecentes para a União Europeia. A solução encontrada foi aprovar uma nova lei que permite o consumo exclusivo para cidadãos do país. Em 2012 ela já será aplicada nas áreas de fronteira e em 2013 chega à capital.
Efe
Polícia da Guatemala apreende mais de 100 quilos de cocaína
A Espanha tentou resolver a questão do fornecimento da maconha ao permitir a existência de cooperativas de produtores e consumidores. Existem aproximadamente 200 associações não lucrativas com esse caráter em todo o país. “As cooperativas cresceram e se espalharam. Elas não poderiam ter lucro, ou seja, vender a maconha. É um modelo apresentado como alternativa”, observa Fiore.
Por outro lado, o pesquisador admite que essa é uma situação difícil de controlar: “A maconha é a droga mais consumida das ilegais, a demanda é muito grande. E sabemos como é difícil controlar uma ONG. Nós estamos em um mundo capitalista, nem todo mundo quer participar ou discutir. Boa parte quer comprar a droga e ir para casa. Além disso, só a maconha permite a produção caseira”.
Denis Russo concorda: “Muitas dessas organizações são responsáveis, mas muitas também são picaretas, porque num clima em que não há segurança jurídica, você abre espaço para todo tipo de gente”. Há pouco tempo, alegando que alguns dos cooperados estavam envolvidos com tráfico, a polícia espanhola fez uma verdadeira devassa nessas organizações.
O exemplo de Portugal
Vizinho da Espanha, Portugal é uma referência no que diz respeito a como lidar com o usuário. O país permite que cada pessoa carregue uma quantidade suficiente para 10 dias de consumo de qualquer droga – no caso da maconha, inferior a 25 gramas; para a cocaína, 2 gramas de cocaína; e 1 grama de heroína ou anfetaminas. Caso seja abordado pelas autoridades, o usuário passará pela análise de uma junta civil que julgará se ele é ou não dependente e, se necessário, será encaminhado para o tratamento do vício.
“Esse modelo é muito melhor que o do Brasil porque os resultados dele são muito positivos. Depois da instalação desse modelo o consumo diminuiu entre os jovens. Também houve uma redução brutal de mortes relacionadas ao uso de drogas. Isso porque quando você reduz a presença do sistema penal, o sistema de saúde consegue lidar melhor com o assunto”, afirma Abramovay.
A lei foi elaborada por uma comissão de notáveis nomeada pelo governo português em 2001. “O que eles fizeram foi juntar uma comissão de especialistas, estudar a sério iniciativas do mundo inteiro e criar um sistema coerente, inteligente, racional, do século XXI, feito a partir de coisas que funcionem. Algo fundamental em Portugal foi tirar a questão do âmbito da Justiça e passar para a Saúde, uma mudança brutal. Isso muda tudo, pois a Justiça é cega, tem que tratar todo mundo igual, e Saúde é o contrário disso: cada doença tem um remédio”, aponta Denis Russo.
O jornalista ressalta que, há uma década, as drogas eram o maior problema de Portugal. “Havia uma histeria muito parecida com a que o crack está provocando no Brasil, e hoje não consta na lista dos dez maiores problemas do país. Acabou de ter campanha eleitoral em Portugal e ninguém nem falou nesse assunto”, completa.
Além disso, a Suprema Corte portuguesa, assim como na Espanha, na Colômbia e na Argentina, considera a criminalização do porte como inconstitucional. Isso porque, segundo o direito penal, a auto-lesão não é passível de punição. “Nesse caso, a única vítima é aquela que consome a droga e o Estado não pode invadir a liberdade individual”, afirma Abramovay.
Maurício Fiore utiliza esse argumento para questionar a chamada guerra às drogas: “Ainda que suponhamos que o Estado possa interferir na liberdade individual – o que eu discordo –, vale mais a pena o custo dessa droga ou você tratar a pessoa para não a consumir? Que guerra é essa? Vamos impedir alguém de cheirar? É irracional. É uma razão entorpecida. Parece que estamos enxugando o gelo”.

(FONTE: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/18857/sem+resultados+guerra+as+drogas+deve+continuar+em+xeque+em+2012.shtml, 31/12/2011 - 09h00 | Danilo Mekari e Maíra Kubík Mano | São Paulo )

quarta-feira, 7 de março de 2012

CULPABILIDADE POR VULNERABILIDADE - ZAFFARONI

Caros alunos, amanhã enviarei o texto do Prof. Zaffaroni sobre “culpabilidade por vulnerabilidade” (EM BUSCA DAS PENAS PERDIDAS), conforme prometido.

Todavia, como esta matéria será revisitada quando da aplicação da pena, quero apenas esclarecer um ponto relevante, a fim de evitar incompreensões:

(i) Zaffaroni trabalha com duas culpabilidades: a pelo “fato” (tradicional) e a por “vulnerabilidade”. A culpabilidade pelo fato é o fundamento e o limite MÁXIMO da pena. A culpabilidade por vulnerabilidade atua sempre de modo a, ou REDUZIR esse limite máximo (situação concreta de vulnerabilidade), ou MANTÊ-LO igual (esforço pessoal para tornar-se vulnerável). Nunca poderá majorar esse limite, pois isso violaria o próprio princípio constitucional da culpabilidade.

(ii) Digamos que a culpabilidade pelo fato seja representada pelo grau “0”. O máximo que um juiz criminal poderá fazer é, tendo em conta a situação de vulnerabilidade do agente, reduzir esse patamar para -1, -2 etc. Caso não se verifique a situação de vulnerabilidade ao sistema penal, ou caso uma pessoa não vulnerável ao sistema penal tenha realizado ainda assim o delito, o patamar correspondente à sua culpabilidade permanecerá igual (grau “0”), ou seja, não será majorada nem diminuído.

(ii) Conclusivamente, a culpabilidade por "vulnerabilidade" não viola o limite máximo da pena, atuando apenas como corretor de desigualdades fáticas (diferente condições pessoais do agente e seletividade do sistema na criminalização) ignoradas pelo direito penal.

A seguir, trecho em que Zaffaroni expõe resumidamente essa distinção (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Hacia un realismo marginal. Caracas: Monte Avila Latinoamericana, 1992,  p. 110.)

   “A quantificação penal reconheceria como limite máximo a culpabilidade do ato, porém não explicitamos com isso o corretivo fático que permitiria estabelecer penas por debaixo de esse limite. A nosso juízo, isto pode praticar-se a partir da vulnerabilidade que a pessoa oferece ao exercício do poder punitivo. É um dado da realidade que quanto maior é o esforço que uma pessoa há feito para fazer-se vulnerável ao exercício do poder punitivo, menor será o espaço da agência judicial para baixar a pena do limite assinalado pela culpabilidade e vice-versa.
Deste modo, a quantificação penal, consistente sempre na tarefa de impor a pena menos violenta possível, colocaria um limite máximo (magnitude «0») que estaria dado pela culpabilidade do ato. O espaço de poder da agência judicial para quantificar a pena por debaixo desse limite (magnitude «-1», «-2», etc.) dependerá sempre do esforço que haja feito a pessoa para alcançar a situação de vulnerabilidade em que o há surpreendido o poder punitivo, esforço de que formará parte a magnitude do conteúdo do injusto, entre outros dados (caracteres pessoais que correspondam ao estereótipo, por exemplo).
  Uma pessoa cujas características pessoais coincidam com as do estereótipo criminal, basta com que incorra em um injusto leve para que seja vulnerável. Por regra geral, a vulnerabilidade alcançada com pouco esforço [como no caso do pequeno traficante] concede à agência judicial um espaço de poder muito considerável para impor penas mínimas ou muito leves, sem que as agências restantes do poder punitivo tenham argumentos ou elementos para criticá-la ou desprestigiá-la. Inversamente, ante a esforços muito grandes [como no caso de um poderoso político que participe de uma rede de pedofilia], a agência judicial carece de poder para proceder de igual forma.
  Partindo do principio de que a pena mais leve é a menos violenta, a agência judicial tem poder no primeiro caso para baixar a magnitudes -1, -2 etc., mas não pode fazê-lo no segundo, sob pena de sofrer desprestígio, críticas e perda de poder, caso em que não lhe restará outro meio que manter-se na magnitude «0» (indicada pela culpabilidade do ato).”